Quanto mais perto menos se vê
Apesar de a nossa sociedade já ter feito progressos significativos no que respeita à discriminação, ainda há um longo caminho a percorrer. A discriminação não se manifesta apenas em relação ao que está fora de nós — manifesta-se também internamente, na forma como nos relacionamos com as diferentes dimensões da nossa própria existência. Muitas vezes discriminamos a dor e o sofrimento ao dizer, mesmo que de forma inconsciente, que há dores mais legítimas do que outras: dores compreensíveis, que merecem atenção e carinho, e outras que não.
Pensemos juntos: quando experienciamos uma dor física, como por exemplo uma dor de costas, o que fazemos? Como olhamos para ela e nos relacionamos com ela? Perante essa dor, a primeira reação costuma ser reconhecê-la, prestar-lhe atenção e talvez verbalizar — “Estão-me a doer as costas.” O passo seguinte pode ser simples, como realizar uma pequena ação que traga alívio — mudar de posição ou alongar. Se a dor for mais intensa, procuramos um saco de água quente; se persistir, podemos tomar um analgésico. Caso continue a incomodar, interrogamo-nos sobre a sua origem e tentamos perceber por que motivo as costas nos doem com tanta frequência.
Se identificarmos uma possível causa, procuramos corrigi-la — ajustando a postura ao longo do dia ou substituindo o colchão, por exemplo. Quando não conseguimos compreender a dor por nós próprios, recorremos a um profissional de saúde que nos pode ajudar a identificar a origem do problema e a acompanhar-nos no processo de recuperação. Tudo isto faz sentido e é, sem dúvida, benéfico, pois permite compreender e aliviar a dor, sobretudo quando esta interfere com o nosso bem-estar e com aquilo que valorizamos.
O que não fazemos é criticar a dor ou julgarmo-nos por senti-la:
“Sou mesmo fraco.”
“Isto não devia estar aqui.”
“Os outros não têm dores de costas.”
“Que falhado, nem consigo estar sentado muito tempo.”
Soa estranho, não é? Em que é que isso ajudaria? Além da dor física, passaríamos a sentir tristeza, ansiedade, desilusão, vergonha, revolta, etc.
Também poderíamos tentar distrair-nos da dor — navegar no telemóvel, ver reels ou beber uma garrafa de vinho. Estas estratégias podem proporcionar um alívio momentâneo, mas não resolvem a causa e podem, até, interferir com o que é importante para nós — como entregar um trabalho da faculdade ou participar num aniversário de um amigo. A longo prazo, é fácil reconhecer que esta não é uma solução eficaz.
Outra coisa que não fazemos é negar a dor ou tentar eliminá-la através de pensamentos como:
“Não estejas assim.”
“Não tens motivo para te doerem as costas.”
“Isto não é nada.”
“Se eu pensar positivo, a dor passa.”
“Tenho de pensar na dor a desaparecer.”
Nada disto parece realmente ajudar, pois não?
Então, porque aplicamos precisamente estas estratégias — tão pouco úteis e eficazes — quando lidamos com a dor emocional? Fazemo-lo com a tristeza, a ansiedade, a raiva, a culpa, a vergonha… e com todas as sensações físicas que as acompanham: o coração acelerado, o peso no peito, a tensão muscular, os tremores, e com todo o sofrimento subjetivo que lhes está associado. É assim tão diferente? Onde é que sentimos tudo isso? Se se manifesta no corpo, é tão “físico” como uma dor de costas. Parece, portanto, que temos dores que “podem entrar” e ser cuidadas, e outras que deixamos “à porta”, sem atenção.
A dor física tende a ser mais aceite, por ser visível e socialmente compreendida. Já a dor emocional é menos tangível, mais difícil de explicar e de compreender. Além disso, culturalmente, a dor física é vista como algo natural e inerente à vida, sem relação com as qualidades, a personalidade ou a capacidade do indivíduo. O mesmo não é verdade em relação à dor emocional. Este é um viés profundamente enraizado, social e historicamente construído.
Convido-vos a experimentarem olhar para qualquer dor emocional da mesma forma que olhariam para uma dor física e a tratarem-na da mesma forma. Pode ser tão simples como tirar um momento para reconhecer que a dor existe (“Estão-me a doer as costas/Estou a sentir tristeza”) e de seguida realizar uma ação sábia – que não piore a situação a longo prazo – e que vise aliviar essa mesma dor (“Massajar as costas/Colocar uma mão a reconfortar a zona do corpo onde sente mais tristeza”).
Não estará também na altura de deixarmos de olhar para certas partes de nós como não merecedoras de respeito, atenção e cuidado?